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QUENTIN MATSYS - THE UGLY DUCHESS - 1513

“Nunca verão estas coisas no Museum of Fine Arts,” diz Michael Frank, o curador. Frank é o tipo de indivíduo que não consegue passar por uma venda de garagem ou uma “feira da ladra”, sem parar para explorar. Ele adora coisas feias, mas para ele, feio(a) é uma palavra problemática. “Quando li o seu email, pensei, Uh-oh,” admitiu. “Chamar algo, de feio, é como chamar algo de bonito. A partir do momento que o dizemos, torna-se complicado, tentar definir o que realmente significa.”


Frank prefere pensar nas pinturas como “badart”, uma palavra, sem hífen. Badart não é o inverso de “good art”; é o inverso de “arte importante”. Alguns até podem chamar a estas obras, arte forasteira, e no passado, muitas delas poderiam ser denominadas primitivas ou arte bruta. Eu prefiro pensar nelas como feias. Charmosas – como um cão dançarino a usar um tutu ou as sobrancelhas dos anos 90 numa particularmente serena, Virgem Maria – mas, todavia, feias.

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No entanto, eu entendo a perspetiva do Frank. Para Frank, feio(a) é uma palavra sufocante, que priva os seus quadros preferidos do seu direito a uma aparência lúdica. Feio(a) é uma palavra que carrega consigo forte implicações morais, durante séculos a feiura tem sido associada a doenças e deformidades, mas também, desonestidade, violência, agressão e fanatismo. Considere o termo, ugly american ou a crítica constante às “feias” ações de Trump.

A palavra vem de um igualmente discordante som, ugga e uggligr, dois adjetivos provenientes do Velho Nórdico, que significam “terrível, temível, agressivo.” (Outras palavras que surgiram do “terrível” incluem abominar e abominável.) O significado mudou apenas no XIV século, quando uglike parou de significar “aterrador” e passou a ser referido como “algo desagradável de se ver.”

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Apesar da palavra ugly ser agora usada primariamente para descrever o inestético das coisas em vês do seu calibre moral, ainda contém elementos do seu significado original. Usá-la pode tornar uma crítica estética bem-intencionada numa opinião moral. Isto é lamentável para aqueles que genuinamente desfrutam e celebram coisas feias. Se também quer apreciar feiura, o primeiro passo que tem de tomar é deixar de assumir que feio é o inverso de belo. Nós tendemos a falar sobre estéticas como se fossem categorias presas num campo de batalha: o bom contra o maligno, a luz contra a escuridão. Mas opostos são uma segurança. Beleza e fealdade não se negam uma à outra.

Fealdade é desvalorizada

Em Defesa de

Quadros Feios

Dentro de um velho edifício de tijolos em Somerville’s Davis Square, por baixo do palco dourado e assentos de veludo, existe um  stranho museu. Escondido na cave do edifício da 1914 Art Deco, está uma coleção de quadros hediondos e desenhos perturbadores, de outro modo conhecido como Museum of Bad Art.

A ciência apoia esta teoria. Estudos feitos na emergente área da neuroestética (estudo de como o cérebro reage à estimulação estética) descobriram que pinturas belas e pinturas feias, iluminam as mesmas regiões do cérebro: o córtex orbitó-frontal, córtex pré-frontal,

e regiões motoras do córtex. Estranhamente, os quadros bonitos ativam mais a região orbitó--frontal e menos a região motora, pelo contrário, os quadros feios ativam menos a região orbitó-frontal e mais a região motora. O autor deste estudo específico, Semir Zeki, sugere hesitantemente que, talvez, as coisas feias mobilizam o sistema motor de maneira a que consigamos escapar ao estímulo indesejado. O mesmo estudo levou Erik Kandel, autor do The Age of Insight, a argumentar que, “a beleza não ocupa uma área diferente do cérebro da fealdade. Ambas fazem parte de um continuum que representa os valores do cérebro que lhes são atribuídas.” Apesar de as experienciarmos de maneira diferente, a beleza e a fealdade localizam-se ambas no nosso entro emocional, uma área profundamente envolvida na análise dos comportamentos de indivíduos, gerando

simpatia e empatia igualmente. Kandel escreve:

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A arte, badart e “arte importante”, podem revelar as obras interiores da mente do artista. A arte bela está no seu melhor e útil quando ilumina verdades sobre a condição humana, mas a badart pode revelar as obras interiores da mente de um indivíduo – as suas estranhas luxúrias, os seus devaneios perturbadores, os seus desejos antissociais,
e os seus medos absurdos. A bela arte pode exprimir-se nos erros e vitórias gerais, de ser-se humano, mas a badart pode proferir de maneira igualmente eloquente, as neuroses e felicidades específicas de uma mente singularmente louca. Afinal de contas, todos gostamos de pores do sol. Mas há uma atração única ao gato carmesim colossal a
devorar um humano de cara pálida debaixo de um céu rosa, do Museum of Bad Art.


A fealdade nunca foi um assunto de muito escrutínio. Na sua maioria, artistas e teóricos têm tratado a feiura como uma categoria imutável, cheia de coisas das quais, simplesmente não gostam. Isto incluía paisagens perigosas, pessoas com deficiência, e objetos que mostravam sinal de uso. Quando a sobrevivência era a primeira prioridade,
as pessoas viam qualquer coisa potencialmente ameaçadora como feia. No geral, obras de arte feias, particularmente, obras que não foram intencionalmente produzidas para ser feias, foram esquecidas na história.

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Katy Kelleher

The Paris Review

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ERNST LUDWIG KIRCHNER - CZARDAS DANCERS - 1908.

"A nossa resposta à arte deriva de uma irrepressível vontade de recriar nos nossos cérebros, o processo criativo – cognitivo, emocional, empático – através da maneira em que o artista produziu a sua obra. Esta urgência criativa doartista e do observador presume-se que explique, essencialmente, a razão pela qual todos os grupos de sereshumanos, de todas as idades e em todos os lugares tenham criado imagens, apesar da arte não ser uma necessidade física para a sobrevivência. A arte é uma inerentemente prazerosa e instrutiva tentativa do artista e do observador, comunicarem e partilharem entre os mesmos, o processo criativo que caracteriza todos os cérebros humanos – um processo que conduz a um momento de Aha!, o reconhecimento repentino de que vimos o interior da mente de uma pessoa, que nos permite ver a verdade subjacente

em ambas, a beleza e a fealdade,

retratadas pelo artista.

- ERIK KANDELL

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Como resultado, as obras de arte feias mais significativas, criadas antes do século XIX, eram intencionalmente feias, criadas por pintores com habilidades técnicas que decidiram, por alguma razão, representar um objeto feio. Frequentemente, a arte feia era criada como um aviso. Aqui Pela Graça de Deus Eu Vou, grita a gárgula agarrada a uma fachada medieval. Para olhos contemporâneos, a arte da Idade das Trevas parece feia como um todo. Na altura, contudo, as pessoas não consideravam, os cães deformados e corvos a usarem chapéus constrangidamente,
feios, embora soubessem que Quadros do Julgamento, que representam os piores cenários da vida após a morte, eram hediondos. Quadros do Julgamento realçam a diferença entre o Céu e o Inferno de maneira a causar medo aos observadores e desencorajá-los de, por exemplo, cobiçar a mulher gira do vizinho ou mentir quando o responsável pelos impostos aparecia para recolher moedas. Às vezes, estes quadros funcionavam como a versão medieval dos sermões de hellfire-and-brimstone de Jonathan Edward: na verdade, tornavam a vida após a morte,
interessante, estimulante, e se calhar, até um pouco apelativa.

 

Pintado no final do século XV, O Jardim das Delícias Terrenas de Hieronymus Bosch, retira da tradição dos Quadros do Julgamento, uma imagem estranhamento humorística e curiosamente hipnotizante dos Países Baixos. Bosch estava a avisar os observadores para não se afeiçoarem a prazeres da terra, e, no entanto, é tão divertido olhar para a sua obra. Apesar da composição excecional, a pintura é feia – ou pelo menos, contém espaços de brilhante fealdade. É sarapintado com barbaridade e respingado com alegria. O Céu, apresentado na extrema esquerda do tríptico, parece meio aborrecido e notavelmente vazio. O Inferno, apresentado na extrema direita, tem fornicadores e músicos com flautas.

AUTOR ANÓNIMO - LUCY IN THE FIELD WITH FLOWERS

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Bosch mostra como a fealdade pode ser brincalhona, mas outros pintores do Renascimento abordam a fealdade com uma mão mais séria e estável. Quando Leonardo da Vinci começou a sua procura pela beleza, interrogando-se sobre uma “série de repugnâncias,” refere o histórico Walter Pater, Da Vinci começou por pintar imagens incrivelmente misóginas (se calhar uma maneira de libertar a sua aversão a sexo heterossexual) e pessoas com doenças e deficiências. Estes desenhos de bruttezza eram intencionalmente pouco atraentes; a suposta fealdade destes indivíduos, tinha a intenção de contrastar com a beleza das outras personagens sentadas de Leonardo. A pintura de 1513, Uma Velha Grotesca de Quentin Matsys, pode situar-se nesta tradição dos grotescos. Mais conhecida como, A Duquesa Feia, esta pintura mostra uma mulher com um corpete apertado e um penteado régio. “A pessoa sentada hoje em dia seria diagnosticada com Doença de Paget,” explica Stephen Bayley através da sua dissertação do Ugly, em 2011. Apesar de agora “sabermos” que não devemos olhar fixamente para o sofrimento dos outros, Bayley diz que há uma “magnífica absurdidade” sobre a popularidade do quadro. É, refere, “um dos postais mais populares vendidos na loja da National Gallery de Londres.”

LEONARDO DA VINCI - GROTESQUE HEAD - circa 1490

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QUENTIN MATSYS - THE UGLY DUCHESS - 1513

Bayley identifica outras épocas culminantes para ugly art, incluindo o período Barroco, que se manifestou entre 1600 e 1750. Durante este tempo, os artistas estavam especialmente interessados em ornamentação, e qualquer superfície que pudesse ser canelada ou dourada ou recortada ou moldada, era, com uma mão rigorosa. Os artistas barrocos foram os maximalistas originais. Mas, apesar de muitos considerarem a Arte Barroca como pouco atraente ou “sinistra” ou “incrivelmente hedionda”, diz Bayley, tenho dificuldade a referir-me a esta arte como feia. A palavra barroco significa “pérola irregular”, contudo há uma ordem na maioria da Arte Barroca – os ornamentos e superfícies desiguais nos edifícios de Francesco Borromini não aparecem aleatoriamente, mas sim ondulam como uma cobra
deslizante. As telas dramáticas de Caravaggio incluem composições inspiradas pelo classicismo e graus elevados de competências técnicas. São excessivas, certamente, mas não são propriamente feias. E para mim, Apolo e Daphne de Bernini, é a escultura mais deslumbrante alguma vez criada, portanto suponho que sou picuinhas com a aversão ao barroco de Bayley. Eu prefiro-o definitivamente, ao que veio a seguir: as penugens embelezadas e os floreados sacarinos de uma Europa

dominada pelo Rococó.

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MARC CHAGALL - HOMMAGE

À APOLLINAIRE - 1911

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OTTO DIX - WOUNDED MAN - 1924.

Mas, lentamente, estes períodos decorativos saíram de moda, e com o surgimento do Romantismo, os artistas europeus viraram-se para uma direção mais naturalista de pintar. Isto coincidiu com um novo desejo de definir ambas a beleza e o seu oposto. No início do século XIX, teóricos começaram a abordar a fealdade como se esta fosse a sua própria categoria estética. Em 1853, Karl Rosenkranz, publicou uma das suas primeiras análises aprofundadas, Estética da Feiura. Isto vai buscar o testemunho estético de Hegel e tenta perceber como as categorias negativas estéticas – como o desconcertante, o grotesco, o sinistro e o feio – se relacionam uns com os outros e como se diferenciam. Nas gerações precedentes, a paisagem montanhosa teria sido vista como bastante sinistra – era feia por simplesmente ser assustadora. Os Românticos contestaram esta noção e começaram a criar cenários simultaneamente belos e assustadores. Os quadros de Caspar David Friedrich são um excelente exemplo disto. São belos e assustadores, mas poucos chamariam de feias, estas paisagens. O que outrora tinha sido aterrador, era recentemente tratado como estético, e assim, a fealdade foi empurrada para outro domínio. A nova casa de ugly art era a grande tenda do Abstracionismo.

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Apesar de hoje sermos perfeitamente capazes de encontrar beleza em Rothko, quando surgiu no século XIX, a abstração parecia quase um impulso depravado. E conforme o Impressionismo deu lugar ao Expressionismo e o século XIX se tornou no XX, o impulso de rotular estas experiências artísticas como moralmente erradas ou degeneradas, aumentou. Em julho de 1937, a exibição curada por Nazis, “Entartete Kunst” (“arte degenerada”), abriu em Munique, incluindo obras de Karl Schmidt-Rottluff, Ernst Ludwig Kirchner, Edvard Munch, Emil Nolde, Franz Marc, Lyonel Feininger e Marc Chagall. Eram estas obras feias? Algumas eram. Mas não eram, definitivamente, tão feias, como a visão genocida dos Nazis. As pinturas faziam parte, também, de um novo mundo artístico, um mundo em que as categorias de fealdade e beleza não tinham muita importância – pelo menos, não para os seus autores. Alguns destes quadros eram feios, e era esse o objetivo. Eram intencionalmente estranhos, surreais e desorientadores. Exibiam uma sociedade caótica e fragmentada. Eram espelhos despedaçados para um mundo despedaçado.

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No nosso pós-moderno ou pós-pós-moderno mundo de arte, pode ser difícil relembrar a importância da fealdade, já que, presentemente, há pinturas feias em todo o lado. Quadros feios estão expostos nos grandes museus, e obras de arte feias são aceites como parte do cânone. Mas embora a arte feia ultrapasse estilos e tempos periódicos, ainda pode ser útil pensar na ugly art, como a sua própria categoria, unificada e estética. Como, engraçado, fofo e interessante, as três características definidas e clarificadas por Sianne Ngia, no seu livro, As Nossas Categorias Estéticas, a fealdade desempenha um papel crucial na história de arte e no design contemporâneo.


Ao contrário dos grotescos, que elevavam os seus sujeitos até alcançarem o belo, obras verdadeiramente feias já não são sobre agradar quem quer que seja. Fealdade é sobre desconforto. Faz-nos sentir um pouco destabilizados - não porque estamos a olhar para algo considerado inquietante, como uma cena religiosa sangrenta ou uma fotografia de uma zona de guerra ou a pintura de um nariz com verrugas, mas porque somos confrontados com uma sensação de desordem.

Isto pode ser intencional, ou pode ser o resultado de uma técnica mal aplicada ou cores desfavoravelmente escolhidas. Tipicamente, a feia arte que vemos nos museus foi feita dessa maneira conscientemente, de maneira a destacar as habilidades do artista (como as elegantes caricaturas de Leonardo), rebelar-se contra as convenções do mundo artístico (como por exemplo, Philip Guston ou o pintor contemporâneo, Neil Jenney) ou revelar algo sobre o mundo e o nosso lugar nele (Hieronymus Bosch, Otto Dix, and Francis Bacon e as suas representações arrepiantes de dor física).

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O Frank e os seus colegas no Museum of Bad Art não colecionam o tipo de quadros feios que o New York Times pode escrever sobre, nem que a Met pode exibir. Em vez disso, Frank usa o seu julgamento estético para escolher obras que o atraiam. “Eu rejeito qualquer coisa que seja desinteressante,” diz. “Obras desinteressantes são
inaceitáveis. Se alguma coisa é pateta ou foi cinicamente produzida numa tentativa de entrar no Museum of Bad Art, então não estou interessado.” Frank também não está interessado em obras bregas ou arte comercial, como quadros de veludo preto ou esculturas de taxidermia.


Há uma sensação de descaramento na arte involuntariamente feia – encarna um desejo que deu errado. E ser capaz de desfrutar de ugly art, não é simplesmente fazer troça dela. A Ugly Art exige um sentimento de soltura; convida-te a mergulhar num estado de alma incerto onde retemos múltiplas crenças simultaneamente.

A obra pode ser feia e pouco atraente, e pode também deleitar e apelar por essas mesmas razões. Pode puxar-te mais perto – queres saber porque é que esta arte foi produzida, o que é que significa e em que é que os artistas estavam a pensar. E se te deixares ficar desequilibrado o suficiente, vais encontrar-te um pouco enamorado. “Se fores às redes sociais, verás o comentário que mais recebo,” diz Frank. 

“As pessoas estão sempre a comentar, eu gosto. Ou até, eu gosto deste quadro - não devia estar aqui.” Frank frequentemente responde, “Eu também gosto. É por isso que coleciono esta arte. Eu gosto dela.”

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